CHINA, ESTADOS UNIDOS E A DISPUTA DO 6G

O embate tem como cerne o desenvolvimento da internet  e envolve muito mais do que pesquisas tecnológicas.

Enquanto o resto do mundo concentra-se em acertar os últimos detalhes para a implementação da internet 5G, China e Estados Unidos já estão colocando em prática pesquisas para o desenvolvimento da tecnologia 6G: uma rede de transmissão de dados ainda mais rápida.

“As redes 6G irão muito além da comunicação. Elas integrarão o processamento e reconhecimento de imagem, mapeamento 3D de alta definição, sensoriamento, integração máquina-homem e uso de novas formas de transmissão”, explica Luciano Leonel Mendes, coordenador de pesquisa do Centro de Referência em Radiocomunicação do Instituto Nacional de Telecomunicações (Inatel).

Para o diretor de tecnologia para América Latina da Nokia, Wilson Cardoso, as redes 6G são um marco importante na história da tecnologia. “Teremos os elementos para a nova revolução industrial: o mundo físico e o mundo virtual unidos”, diz.

As redes de sexta geração prometem, além de uma velocidade até cem vezes maior do que sua antecessora, reduzir o tempo de latência – o famoso delay – para uma margem quase imperceptível, o que possibilitaria, por exemplo, a realização remota de cirurgias com muito mais acurácia e a aplicação do conceito de cidades inteligentes, que seriam centros tecnológicos onde todos os objetos se conectariam entre si e com uma rede global de dados.

Patricia Capelini Borelli, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas e professora no curso de relações internacionais da Faculdade de Campinas (Facamp), explica que esses avanços seriam impossíveis com o suporte da tecnologia que circula atualmente na maioria dos países. “Hoje, com o 4G, não conseguiríamos ter o salto para essa estrutura, porque o 4G suporta um volume menor de dados e ainda há o problema de a transmissão não ser exatamente segura em relação à latência – imagina ter uma cidade toda com carros inteligentes com esse atraso na comunicação”.

A implementação da internet 6G possibilitará mudanças na sociedade. Por isso, China e Estados Unidos protagonizam uma disputa de poder para ver quem assumirá a liderança do mercado tecnológico global.

O embate entre esses dois países possui um pano de fundo histórico que data do início do plano de modernização da China. “A partir dos anos 1970, a China começou a ter projetos autônomos que visavam à modernização do país.

Esses projetos, principalmente no campo da tecnologia, de algum modo sempre bateram de frente com o modus operandi do sistema internacional, principalmente em termos, por exemplo, de propriedade intelectual e desenvolvimento de padrões tecnológicos”, explica Borelli.

No entanto, até poucos anos atrás, os chineses ainda ocupavam papel secundário nesse mercado, atuando como um centro de produção de equipamentos que serviam de base para o desenvolvimento de tecnologias estadunidenses. “Recentemente, no entanto, a China está focada em ampliar sua participação em projetos tecnológicos, e é uma novidade o país assumir esse protagonismo. Isso assusta o ocidente, digamos assim”, pontua a professora.

O investimento da China em pesquisas voltadas para redes móveis e telecomunicações permitiu que o país saísse na frente na disponibilização da tecnologia 5G.

A Huawei, empresa chinesa que hoje é a maior fabricante global de telecomunicações, lidera as patentes e já é a provedora das redes de quinta geração para 60% dos países da União Europeia, além de estar se fortalecendo no Oriente Médio e na Ásia.

Agora, o foco no aperfeiçoamento das redes de sexta geração já possibilitou grandes avanços, incluindo o lançamento de um satélite-teste, em novembro do ano passado, que utiliza a tecnologia 6G para otimizar o monitoramento e a prevenção de desastres naturais através da transmissão quase instantânea de um grande volume de dados.

A própria Huawei, inclusive, conta com laboratórios de pesquisa internacionais cujo eixo central é o desenvolvimento do 6G.

Enquanto isso, os Estados Unidos, a fim de retomar o papel de líder tecnológico mundial, também acelera a busca pela disponibilização das redes 6G através de duas frentes distintas.

Ainda em 2019, durante a gestão de Trump, já havia a ciência de que se o país quisesse competir com a China, deveria correr.

Com isso em mente, a primeira linha de atuação do país aposta no potencial de suas big techs (gigantes de tecnologia) como Apple, Google e LG.

Essas empresas, no fim do ano passado, se uniram a outros desenvolvedores de tecnologia estadunidenses e estabeleceram uma aliança para “promover a liderança norte-americana em 6G”, a Next G Alliance. Além da tentativa de chegar primeiro, desde as pesquisas em torno do 5G, os norte-americanos parecem buscar reduzir a velocidade de seu adversário.

Para isso, os EUA lançam leis protecionistas com foco em enfraquecer a economia da China e impedir que as tecnologias de lá avancem para as américas.

Outro ponto de tensão nessa disputa envolve as denúncias de espionagem feitas pelos Estados Unidos mirando a chinesa Huawei.

Os norte-americanos alegam que ceder os direitos de implementação das redes 5G para a China comprometeria a segurança dos países, uma vez que o sistema estaria sendo utilizado como instrumento de espionagem pelo governo chinês.

Esse discurso compromete a imagem chinesa no exterior e pode ser fator decisivo no desenvolvimento do 6G e na competição pela liderança tecnológica, considerando a influência internacional que os estadunidenses têm. “O discurso da segurança e da privacidade é muito complicado”, explica Borelli. “O avanço dessas tecnologias vai afetar desde a segurança pública até a infraestrutura militar e energética, agricultura e segurança alimentar, setores sensíveis que vão ser transformados.

Alguns autores falam de a questão da segurança ser utilizada como uma ferramenta na guerra comercial para barrar o avanço das empresas chinesas e isso tem efeito.

Por exemplo, a Austrália já anunciou que não vai usar equipamentos chineses e mesmo na Europa alguns países estão revendo sua infraestrutura”. A pesquisadora ainda pontua que este é um tópico que deve ser debatido com prudência. “Muitos países têm receio dos equipamentos chineses, mas não fazem esse mesmo questionamento frente aos equipamentos de outros países… Por que será que é tão diferente o que a China faz do que o que os outros países fazem?”, questiona.

Outros grupos, com sede no Japão, Coreia do Sul e União Europeia, também já anunciaram programas de pesquisa que visam passar à frente dos norte-americanos e dos chineses e disponibilizar mundialmente o 6G antes de seus competidores.

No entanto, segundo Patrícia Borelli, os avanços da China e dos EUA são bastante promissores. “São praticamente os únicos países que possuem big techs grandes o suficiente para competir”.

No Brasil, empresas de telecomunicações já começaram a realizar pesquisas buscando contribuir para o desenvolvimento das redes de sexta geração. “Por enquanto, não estamos atrasados”, explica Mendes. “Os pesquisadores brasileiros estão agindo para contribuir com o desenvolvimento científico e tecnológico, além de atuarem para que as demandas da sociedade sejam atendidas pela nova rede de comunicações móveis”.

O pesquisador pontua que o Inatel e a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) já atuam nesta área desde 2019 e atualmente lideram um projeto sobre redes 6G envolvendo diversas universidades no Brasil e com parcerias importantes no exterior. “É preciso notar que o 6G é uma maratona. São vários anos de jornada e estamos dando os primeiros passos”, acrescenta Cardoso.

Luciano Mendes critica a postura individualista que muitos países, inclusive China e Estados Unidos, adotaram nesta que é dita por muitos pesquisadores como a “nova Guerra Fria”. “Não há espaço para este tipo de regionalismo no desenvolvimento da rede 6G, pois é necessário um esforço global para que esse novo padrão atinja seu potencial”. Wilson Cardoso concorda que “a colaboração é fundamental para o desenvolvimento de qualquer ecossistema”.

O clima de competição pode ainda fazer com que pontos relevantes sejam deixados em segundo plano, destaca Patrícia. Preocupados em “avançar primeiro”, os países deixam de analisar questões importantes sobre a forma com que a implementação da nova tecnologia pode afetar a sociedade. “Nós ficamos deslumbrados com a tecnologia, mas é necessário pensar como os avanços tecnológicos afetam, por exemplo, a disponibilidade de empregos. Para isso, é essencial incluir as ciências humanas nas discussões sobre tecnologia. O desenvolvimento é bom, mas se feito na pressa e com o discurso da segurança como principal ponto de pressão, tende a colocar para baixo outros pontos de debate que são igualmente urgentes”.

Bianca Bosso é formada em ciências biológicas pela Unicamp e bolsista Mídia Ciência (Fapesp).

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